Chianti 25 anos

nice

Desestabilizando mentes desde 1991.

Terror, thriller, drama psicológico, filme policial. Deixe os gêneros de lado. O Silêncio dos Inocentes faz parte da constelação de obras que norteiam o bom cinema até hoje. Junto de Aconteceu Naquela Noite,de 1934, e Um Estranho no Ninho, de 1975, compõe a tríade dos arrebatadores dos cinco Oscars nobres: melhor filme, melhor diretor, melhor ator, melhor atriz e melhor roteiro (no caso, adaptado). Em Tudo Vai Bem, filme da fase politicamente engajada de Jean-Luc Godard, o personagem “Ele” dizia que preferia realizar comerciais a adaptar aventuras comerciais. Se o fazer cinematográfico tivesse se restringido à esse tipo de pensamento, o cinema já teria chegado ao fim. E talvez esteja chegando.

Hipóteses radicais à parte, é interessante ver que o diretor, Jonathan Demme, figura entre os pupilos de Roger Corman, um grupo que inclui, também, Scorcese, Copolla e Joe Dante, por exemplo. Filhos do cinema explotation, das grindhouses, 2 por 1; talvez o que mais se aproxime, analogicamente, da postura de alguns artistas pop. Despontaram para Hollywood, sem perder a fidelidade às origens, e se tornaram parte dos nomes mais respeitáveis de suas gerações.

Thomas Harrys é o autor do romance original e Ted Tally a mão que plantou com sucesso a frágil semente do livro nas terras do roteiro cinematográfico. Frágil porque, com a fama que a história recebeu a partir deste filme, sequências foram inevitáveis. Em sua maioria, de regulares para ruins, como Hannibal – A Origem de Mal, inclusive, com roteiro do próprio Harrys, que conseguiu matar o vilão em sua própria origem.

chainti

Jodie Foster e Anthony Hopkins constituem umas das melhores duplas de antagonistas, firmando uma relação de independência. A estudante da Academia do FBI, Clarice Starling, que, como se já não bastasse ter de enfrentar o chauvinismo inerente a sua carreira, tem de enfrentar, logo de cara, o extremo da psicopatia, da racionalidade e do metodismo, Dr. Hannibal Lecter, no intuito de arrancar pistas para rastrear um serial killer. O comportamento maquinal e, ao mesmo tempo, sedutor do personagem de Hopkins quebra os limites da suspensão da experiência cinematográfica e agarra o espectador pelo só pelo olhar em agonizantes close-ups. A detetive, por sua vez, encarna as reações de medo, sem sucumbir ao controle mental (um divertimento para o vilão) que as interrogações provocam. O que não quer dizer que não sobram sequelas, um dos pilares que eternizam o “nosso” silêncio.

À parte a dupla de protagonistas, outros personagens merecem destaque: o serial killer Buffalo Bill, vivido por Ted Levine, e o supervisor de Clarice, Jack Crawford, interpretado por Scott Glenn. Tal como Hannibal, o serial killer tem muito pouco tempo de cena. Mesmo assim, ambos consolidam vilões tão diferentes e tão marcantes. Buffalo Bill guarda as suas gordas vítimas morrerem de fome para que possa enfim assassiná-las e retirar a pele para costurar uma peça, desovando-as depois em diferentes rios. Ao contrário do procurado, Hannibal, “o Canibal”, como explica seu codinome, não guarda troféus. Maníacos de naturezas diferentes. Atitudes amplamente distintas levam, logo, a futuros distintos.  É essa a moral (se é que assim pode ser chamado) que fica.

Permanece, também, uma reflexão sobre aparência e natureza. Dos “lobos em pele de cordeiro” triunfa aquela que diz desde o começo que é lobo, que é um perigo impossível de conter. Nesta vertente, o terror se solidifica e consegue atingir tanto o desenrolar da ação, como da construção mental dos espectadores. E, para fechar esse ciclo, a falta da demonstração de sentimentos explícitos pela personagem de Foster concretiza esse pingue-pongue: será que, apesar de tudo, é possível se sensibilizar por Hannibal? Sim, e quando ele tira literalmente a máscara, a surpresa mistura agonia e gozo. Se é que isso já não surgira na cena, talvez, mais teatral do filme, a degustação que Hopkins faz da bochecha de um policial.

tsttststs

No meio da ação, do decorrer das investigações que, ainda bem, não sofrem interrupções para explicar minuciosamente o que acontece, afinal, não necessita, acabam não sobrando espaço para análises da profundidade que os elementos do filme como um todo consolidam. Surgem fora do período da projeção. Sai de cena o technè, o maquinismo, entra o humanismo, o pensar sobre o real e sobre o sujeito.

Paradoxalmente, os elementos mais humanos do filme são fruto da perfeição técnica. A trilha ora opta nos momentos mais soturnos por um instrumental tímido ora por músicas mais populares. Porém, o brilho substancial é a edição e o trabalho da câmera. Seja nos já citados close-ups em Hannibal, ou nos momentos mais triviais, tudo se interliga, não pela originalidade, não são quadros complexos, mas na misé-en-scene e na competência do editor, Craig McKay. A simplicidade enquanto potencial. A clareza de objetivos, do ritmo. Mensageiro do Diabo, de 1955, único filme dirigido por Charles Laughton, e Alien, de 1979, são dois exemplos válidos de influências de O Silêncio dos Inocentes. Apesar deste utilizar muito o plano-contraplano, o timing e o método de construção da atmosfera são deveras similares. Interessante notar que enquanto o longa de Ridley Scott constrói um universo futuro, com uma estética planejada, tentando, assim, afastar-se dos efeitos do tempo, o de Demme é inteligente ao não mostrar elementos facilmente datáveis, como celulares e computadores, apenas telefones fixos pontualmente, instaurando uma práxis investigativa atemporal.

Para um ponto de vista que preza detalhes, O Silêncio pode decepcionar. Realmente, não há como verbalizar objetivamente as motivações de Hannibal, por exemplo. Assim como num terror sobrenatural, só que, desta vez, num terreno muito humano. Ou muito desumano. É essa mistura da dúvida com a certeza, do psicótico com o lógico em sua maneira mais sagaz, seja em seu fazer ou em seu desenrolar, que maturam esse Chianti há 25 anos.

Deixe um comentário